— Eu deveria ter mirado na sua cabeça — disse Lisbeth Salander com uma voz sem expressão. — O que você está fazendo aqui? Achei que tinha se mandado há meses para o exterior.
Ele sorriu para ela.
Mesmo que quisesse, não poderia responder à pergunta de Lisbeth Salander. Nem ele próprio sabia o que estava fazendo naquela olaria abandonada.
Ele deixara Gosseberga para trás com um sentimento de libertação. Achava que Zalachenko estava morto e que ele iria assumir a empresa. Sabia que era um excelente organizador.
Trocara de carro em Alingsâs, enfiara no porta-malas Anita Kaspersson, a assistente de odontologia apavorada, e rumara para Borâs. Ele não tinha um plano, ia improvisando. Não dedicara um só pensamento à sorte de Anita Kaspersson. Para ele tanto fazia ela viver ou morrer, e achava que precisaria se livrar de uma testemunha incômoda. Em algum lugar nos arredores de Borâs percebeu de repente que poderia usá-la de outra maneira. Continuara em direção ao sul e descobrira uma área florestal isolada perto de Seglora. Amarrara a mulher numa granja e a abandonara lá. Calculava que em algumas horas ela conseguiria se soltar e então direcionaria as buscas policiais para o sul. E se ela não conseguisse se soltar e morresse ali de fome ou de frio, não era problema dele.
Na verdade, ele voltara a Borâs e seguira em direção ao leste e a Estocolmo. Fora direto ao MC Svavelsjõ, embora tomando o cuidado de evitar as instalações do clube. Era uma chateação Magge Lundin estar na cadeia. Então fora procurar o sergeant at arms do clube, Hans-Âke Waltari, na casa dele. Pedira ajuda e um lugar para se esconder, e Waltari então o mandou procurar o tesoureiro e responsável pela área financeira do clube, Viktor Gõransson. No entanto, ficara com ele apenas por algumas horas.
Teoricamente, Ronald Niedermann não tinha por que se preocupar com dinheiro. Sem dúvida, fora obrigado a deixar em Gosseberga quase duzentas mil coroas em dinheiro, mas possuía quantias muito maiores aplicadas no exterior. Seu problema era que lhe faltava dinheiro vivo. Gõransson administrava as finanças do MC Svavelsjõ, e Niedermann percebeu que havia ali uma bela oportunidade. Fora brincadeira de criança convencer Gõransson a lhe mostrar onde ficava o cofre-forte, na granja, e se abastecer de oitocentas mil coroas em dinheiro.
Niedermann lembrava vagamente de que havia também uma mulher na casa, mas não tinha muita certeza do que havia feito com ela.
Gõransson também tinha um carro, que ainda não estava sendo procurado pela polícia. Niedermann rumou para o norte. Planejava pegar uma das balsas para Tallínn que saíam de Kapellskár.
Ao chegar a Kapellskár, parará num estacionamento. Desligara o motor e ficara trinta minutos observando os arredores. Estava fervilhando de tiras.
Tornara a ligar o carro e continuou rodando ao acaso. Precisava de um esconderijo onde pudesse se entocar por algum tempo. Passando nas proximidades de Norrtalje, lembrara da antiga olaria. Fazia mais de um ano que não pensava nela, desde a reforma. Os irmãos Harry e Atho Ranta usavam o local como depósito intermediário de mercadorias provenientes ou destinadas aos países bálticos, mas eles estavam no exterior havia várias semanas, desde que o jornalista Dag Svensson, da Míllenníum, começara a bisbilhotar o comércio das putas. A olaria estava vazia.
Escondera o Saab de Gõransson num hangar atrás da fábrica e entrara. Tinha sido obrigado a arrombar uma porta do térreo, e uma de suas primeiras iniciativas, depois, fora providenciar uma saída de emergência, uma chapa de compensado removível na lateral menor do térreo. Mais tarde, substituíra o cadeado quebrado. Então se acomodara no quartinho confortável do piso superior.
Uma tarde inteira se passou antes de ele ouvir o ruído nas paredes. No começo pensou que fossem seus fantasmas habituais. Ficou escutando por uma hora, extremamente tenso, e então se levantou e foi escutar na sala grande. Não ouviu nada, mas esperou, até perceber o som de algo raspando.
Encontrou a chave na bancada.
Raramente Ronald Niedermann tinha ficado tão surpreso quanto ficou ao abrir a porta e deparar com as duas putas russas. Até onde entendeu, elas estavam descarnadas daquele jeito por falta de comida, depois que o último pacote de arroz acabou. Tinham sobrevivido à base de chá e água.
Uma das putas estava tão esgotada que não teve energia para se erguer na cama. A outra estava em melhores condições. Só falava russo, mas ele conhecia suficientemente o idioma para entender que ela agradecia a Deus e a ele por salvá-las. Ele a rechaçara, estupefato, recuara e trancara a porta.
Não sabia o que fazer com elas. Preparou uma sopa com os enlatados encontrados na cozinha e serviu a elas enquanto refletia. A mulher mais esgotada que estava de cama parecia recobrar as forças. Ele passara a noite interrogando as duas. Levou algum tempo para entender que elas não eram putas, e sim estudantes que haviam pago aos irmãos Ranta para que as fizessem entrar na Suécia. Eles tinham lhes prometido visto de permanência e um trabalho. Chegaram a Kapellskár em fevereiro e foram levadas diretamente para aquele depósito, onde foram trancafiadas.
Niedermann se aborrecera. Então aqueles malditos irmãos Ranta tinham mantido uma atividade paralela sem que Zalachenko soubesse. Depois, haviam simplesmente esquecido as mulheres, ou talvez as tivessem abandonado de propósito à própria sorte quando deixaram a Suécia às pressas.
A questão era o que fazer com elas. Ele não tinha motivo algum para lhes fazer mal. Mas também não podia se dar ao luxo de libertá-las, pois elas muito provavelmente conduziriam a polícia até a olaria. Simples assim. Não podia mandá-las de volta para a Rússia, pois nesse caso teria de ir com elas até Kapellskar. Parecia arriscado demais. A morena, que se chamava Valentina, oferecera seu corpo em troca de ajuda. Ele não tinha a menor vontade de transar com ela, nem com a outra, mas a proposta transformara a garota em puta. Todas as mulheres eram putas. Simples assim.
Ao fim de três dias, cansara-se de suas súplicas incessantes, apelos e golpes na parede. Não via outra saída. De sua parte, tudo que mais desejava era tranqüilidade. De modo que abrira a porta pela última vez e, rapidamente, dera um fim ao problema. Pedira perdão a Valentina antes de estender as mãos e, num só gesto, quebrar-lhe o pescoço entre a segunda e a terceira vértebra. Depois cuidara da loira, deitada na cama, cujo nome ignorava. Ela ficara deitada, passiva e sem resistir. Levara os corpos para o térreo e os escondera num tanque cheio de água. Finalmente pudera experimentar uma espécie de paz.
Não tinha a intenção de permanecer na olaria. Só pretendia esperar até grande parte da mobilização policial diminuir. Raspou a cabeça e deixou a barba crescer um centímetro. Isso mudou sua fisionomia. Encontrou um macacão que pertencera a um dos operários da NorrBygg e que era quase do seu tamanho. Vestiu o macacão, pôs um boné esquecido da Beckers Fãrg, enfiou uma trena de marceneiro no bolso e foi fazer compras no posto de gasolina no morro do outro lado da estrada. Tinha bastante dinheiro vivo, roubado do MC Svavelsjõ. Foi no final do dia. Parecia um operário comum parando ali antes de voltar para casa. Ninguém pareceu reparar nele. Habituou-se a fazer compras uma ou duas vezes por semana. No posto de gasolina, o reconheciam logo e o cumprimentavam cordialmente.
Desde o início, dedicara um bom tempo protegendo-se dos seres que povoavam o local. Entocavam-se nas paredes e saíam durante a noite. Ele os ouvia andando pela sala.
Entrincheirou-se no quarto. Depois de alguns dias, se cansou daquilo. Armou-se de uma baioneta encontrada numa gaveta da cozinha e saiu para enfrentar seus monstros. Chegara a hora de acertar as contas com eles.
De repente, percebeu que as criaturas recuavam. Pela primeira vez na vida, a presença delas dependia da vontade dele. Elas fugiam quando ele se aproximava. Podia ver suas caudas e seus corpos deformados atrás dos caixotes e armários. Berrou com elas. Elas fugiram.